Curto e triste = O mundo é um moinho.
O Lugar é um
retrato simples sobre a vida do pai da escritora Annie Ernaux. Tem o formato de
memórias e principalmente em um tom bem dramático. Apesar disso, é um texto
fluido que me prendeu desde as primeiras linhas.
"Talvez
seu maior orgulho, ou até mesmo aquilo que justificava a sua existência: que eu
fizesse parte de um mundo que o desprezou."
Neste livro
curto a autora que também é personagem disseca sua relação com o falecido pai,
que com trabalho árduo conseguiu fazer com ela tivesse suficiente educação
formal para alcançar um lugar que ele nunca conseguiu. Uma narrativa sobre
pertencimento, sobre seu lugar na sociedade.
"Escrevo
bem devagar. Enquanto me esforço para reconstruir a trama de significados de
uma vida, levando em conta acontecimentos e escolhas, tenho a sensação de que
vou perdendo, na essência, a figura do meu pai."
Cru, sem
muito tempero, esse livro reafirma a potência de Annie Ernaux como escritora.
Prêmio Nobel de Literatura de 2022 muito merecido. Me fez pensar no livro que a
Simone Beauvoir escreveu sobre a mãe em circunstâncias semelhantes. Ou Carta ao
Pai de Franz Kafka. Enfim, me identifiquei muito. Terminei de ler com os olhos
marejados.
"Ou
seja, terei que escrever sobre meu pai, sobre a vida dele e sobre essa
distância entre nós dois, que teve início em minha adolescência. Uma distância
de classe, mas bastante singular, que não pode ser nomeada. Como um amor que se
quebrou."
Ano: 1983 /
Páginas: 114 - Idioma: francês - Editora: Galimard
Annie Ernaux
é uma escritora e professora francesa. Sua obra literária é frequentemente
referida como "autossociobiografia", por se calcar em eventos de sua
própria vida (por vezes bastante íntimos) para construir relatos que dissecam a
atmosfera social de diversos momentos do século XX. Foi a laureada do Prêmio
Nobel de Literatura de 2022 "pela coragem e acuidade clínica com que
ela descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da
memória pessoal"
Nascimento: 01/09/1940
| Local: França - Normandie – Lillebonne
Gêneros:
Biografia, Autobiografia, Memórias / Literatura Estrangeira / Sociologia
SINOPSE EM
PORTUGUÊS
Livro que
lançou a autora à fama, O lugar, inédito no Brasil, estabelece as bases para o
projeto literário que Ernaux levaria adiante por três décadas de consagração
crítica e sucesso de público. Nesta autosociobiografia, uma das mais
importantes escritoras vivas da França se debruça sobre a vida do próprio pai
para esmiuçar relações familiares e de classe, numa mistura entre história
pessoal e sociologia que décadas mais tarde serviria de inspiração declarada a
expoentes da autoficção mundial e grandes nomes da literatura francesa como
Édouard Louis e Didier Eribon. O resultado é um clássico moderno profundamente
humano e original.
SINOPSE EM FRANCÊS
Après la mort de son père, Annie Ernaux retrace la vie de cet
ancien ouvrier devenu cafetier, qui avait conquis sa « place » dans
la société. A travers ce récit biographique, l'auteure-narratrice évoque ses
origines modestes et ses propres souvenirs. Elle tente aussi, par l'écriture,
de combler la douloureuse distance qui s'était creusée entre son père et elle :
un hommage plein de justesse et de pudeur...
CITAÇÕES
FAVORITAS
"Enfant, quand je m'efforçais de m'exprimer dans un langage châtié, j'avais l'impression de me jeter dans le vide. Une de mes frayeurs imaginaires, avoir un père instituteur qui m'aurait obligée à bien parler sans arrêt en détachant les mots. On parlait avec toute la bouche. Puisque la maîtresse me "reprenait", plus tard j'ai voulu reprendre mon père, lui annoncer que "se parterrer" ou "quart moins d'onze heures" n'existaient pas. Il est entré dans une violente colère. Une autre fois : "Comment voulez-vous que je ne me fasse pas reprendre, si vous parlez mal tout le temps ! " Je pleurais. Il était malheureux. Tout ce qui touche au langage est dans mon souvenir motif de rancœur et de chicanes douloureuses, bien plus que l'argent"
"Tudo o
que diz respeito à linguagem é, na lembrança que tenho dele, motivo de rancor e
de brigas doloridas, muito mais do que o dinheiro."
"só há
pouco percebi que escrever o romance é impossível. para contar a história de
uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de
vista artístico, nem tentar fazer alguma coisa "cativante" ou
"comovente". vou recolher as falas, os gestos, os gostos do meu pai,
os fatos mais marcantes de sua vida, todos os indícios objetivos de uma
existência que também compartilhei. nada de memória poética, nem de ironia
grandiloquente. percebo que começa a vir com naturalidade uma escrita neutra, a
mesma escrita que eu usava em outros tempos nas cartas que enviava aos meus
pais contando as novidades."
“Nada de
memória poética, nem de ironia grandiloquente. Percebo que começa a vir com
naturalidade uma escrita neutra, a mesma escrita que eu usava em outros tempos
nas cartas que enviava aos meus pais contando as novidades."
"Um dia,
cheio de orgulho no olhar, ele me disse: 'Eu nunca te fiz passar
vergonha'."
"Acabei
me reencontrando com a herança que tive de deixar do lado de fora do mundo
burguês e instruído quando entrei nele."
"Ele
tinha feito um empréstimo para poder comprar o terreno e a casa. Ninguém na
família antes dele tinha sido dono de nada. Por trás da aparente felicidade, a
tensão por ter alcançado o conforto na marra."
“Talvez eu
escreva porquê não tínhamos mais nada para escrever um ao outro.”
" Tínhamos
tudo o que era preciso ter, em outras palavras, comíamos até ficar
satisfeitos."
"
Deslizei para dentro dessa metade do mundo, para a qual a outra metade não
passava de decoração."
"A
religião, bem como a higiene pessoal, dava-lhes a dignidade. Arrumavam-se aos
domingos, cantavam o Credo ao lado dos grandes fazendeiros, colocavam moedas no
prato de doações. Meu pai era coroinha e adorava acompanhar o padre quando ia
fazer a extrema-unção. Quando eles passavam, todos os homens tiravam os
chapéus."
" As
crianças costumavam ter vermes. Para o tratamento, costuravam no lado de dentro
da camisa, perto do umbigo, uma bolsinha cheia de alho. No inverno, algodão nos
ouvidos. Quando leio Proust ou Mauriac, não consigo acreditar que eles se
referem à mesma época em que meu pai era criança. O ambiente em que meu pai
vivia era medieval".
“Arrisco uma
explicação: escrever é o último recurso quando se traiu.”
"Os
livros e a música são bons para você. Eu não preciso de nada disso para
viver".
"Nossas
brigas na mesa começavam sem motivo. Eu sempre achava que tinha razão porque
ele não sabia discutir."
"Uma
ideia fixa: 'O que vão pensar da gente?' (os vizinhos, os clientes, todo
mundo)."
“A religião,
bem como a higiene pessoal, dava-lhes a dignidade.”
“Por outro
lado, se me entrego às imagens da memória, vejo meu pai tal como ele era, o
sorriso, o modo como caminhava, nós dois no parque de mãos dadas e o carrossel
que me enchia de medo.”
“Meu pai tinha consciência de exercer uma
função social necessária, de oferecer um lugar de festa e liberdade a todos os
que, segundo ele, “nem sempre tinham sido assim”, mesmo que não pudesse
explicar claramente por que eles haviam ficado daquele jeito.”
“ele não
sabia o que era belo, o que deveria ser apreciado.”
“Em suma,
comportava-se com inteligência, que consistia em perceber nossa inferioridade e
combatê-la, encontrando meios de escondê-la o melhor que podia.”
“Ele se
recusava a usar um vocabulário que não fosse seu.”
"Minha
mãe me escrevia, ‘vocês poderiam vir aqui em casa para descansar um pouco’, sem
ter coragem de me dizer que fôssemos até lá apenas para vê-los. Acabava indo
sozinha, calando os verdadeiros motivos para a indiferença que o genro
demonstrava, motivos que ele e eu não discutíamos, e que eu aceitava resignada.
De que maneira um homem nascido em uma família burguesa, com formação
universitária, e que manejava bem o uso da ironia, poderia se divertir na
companhia de pessoas simples? A gentileza de meu pai, que meu marido
reconhecia, jamais poderia compensar, de seu ponto de vista, uma falta
essencial: uma conversa inteligente. Na família dele, por exemplo, quando
alguém quebrava um copo, o outro dizia em seguida ‘não toquem no copo, que ele
se quebrou!’ (um verso de Sully Prud’homme)."
"
Durante todo o tempo em que escrevi, também corrigi provas, preparei modelos de
dissertações escolares, porque me pagam para fazer isso. Este jogo de ideias
sempre produziu em mim a mesma sensação que o luxo, um sentimento de
irrealidade, uma vontade de chorar.
No mês de
outubro do ano passado, reconheci, no caixa do supermercado, bem na fila onde
eu aguardava com meu carrinho, uma antiga aluna. Quero dizer, lembrei que ela
tinha sido minha aluna uns cinco ou seis anos antes.
Não sabia seu
nome, nem de qual turma ela era. Quando chegou minha vez, para puxar assunto,
perguntei: ‘Como estão as coisas? Você gosta daqui?’.
Ela
respondeu, sim sim. E, em seguida, depois de ter passado as latas de conserva e
as bebidas, disse em um tom chateado: ‘A escola técnica não deu certo’. Ela
devia achar que eu ainda me lembrava das escolhas dela. Mas eu havia esquecido
por completo por que ela fora enviada para uma escola técnica, e para qual
carreira. Então eu disse: ‘até a próxima’. Ela já estava pegando com a mão
esquerda as compras do cliente seguinte enquanto ia digitando, sem olhar, com a
mão direita."
"Depois,
ao longo do verão, enquanto esperava meu primeiro cargo de professora, pensei:
“um dia terei que explicar todas essas coisas”. Ou seja, terei que escrever
sobre meu pai, sobre a vida dele e sobre essa distância entre nós dois, que
teve início em minha adolescência. Uma distância de classe, mas bastante
singular, que não pode ser nomeada. Como um amor que se quebrou."
"era
preciso continuar vivendo, apesar de tudo."
"Quando
[o pai] voltou para casa, não quis mais trabalhar com a cultura. Era assim que
ele chamava o trabalho na terra. O outro sentido de cultura, o sentido
espiritual, ele considerava inútil".
"(...) a
esperança de que um dia eu seria melhor do que ele. Em qual momento esse sonho
substituiu o próprio sonho dele (...)"
“Agora estou
usando várias vezes o ‘nós’, pois durante muito tempo eu também pensei como ele
e não sei dizer quando foi que me transformei.”
“Conversávamos sobre os mesmos assuntos de antigamente, de quando eu era
pequena, nada além disso. Eu achava que ele não podia fazer mais nada por mim.”
“Tinha me
criado para que eu desfrutasse de um luxo que ele próprio ignorava.”
“Encontrei em
pessoas anônimas vistas não sei onde, que trazem, mesmo sem saber, traços de
força ou de humilhação, a realidade esquecida de sua condição.”
“Me submeti
às vontades do mundo em que vivo, que se esforça para que todos se esqueçam das
lembranças de uma vida com hábitos mais simples, como se fossem uma coisa de
mau gosto.”
“Ao escrever,
caminha-se no limite entre reconstruir um modo de vida em geral tratado como
inferior e denunciar a condição alienante que o acompanha. Afinal, essa maneira
de viver constituía, para nós, a própria felicidade, mas era também a barreira
humilhante de nossa condição (consciência de que ‘em casa as coisas não estão
lá tão bem assim’). Eu gostaria de falar ao mesmo tempo dessa felicidade e de sua
condição alienante. Sensação de que fico oscilando de um lado para o outro
dessa contradição.”
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