sábado, 3 de junho de 2023

Resenha – Niketche: Uma história de poligamia - Paulina Chiziane


TODA MULHER DEVE LER ESSE LIVRO!


Estou participando de um novo grupo de leitura aqui em Paris, desta vez para ler mulheres que escrevem em língua portuguesa (Leia Mulheres Paris), e o que começou como auto obrigação, terminou em uma leitura para lá de prazerosa.

 

De antemão é um choque de cultura que de situações tão absurdas as vezes eu achava engraçado – o famoso rindo com respeito. Apesar desse clima, por vezes descontraído, Niketche - uma história de poligamia é um romance cru. Narrado em primeira pessoa, o enredo já me atraiu por aí. Por vezes parei de ler apenas para digerir as palavras difíceis de engolir.



Minha opinião geral é que se trata de um livro triste. É tão verdadeiro, tão autêntico que ninguém consegue passar indiferente por suas páginas. Uma verdadeira obra-prima, que inclusive já faz parte dos romances moçambicanos mais renomados do século XX.

 

Paulina Chiziane é vencedora do Prêmio Camões 2021, o mais prestigiado da língua portuguesa. A autora é uma verdadeira contadora de histórias, que de tantas acaba se tornando um romance. Me lembra Garcia Marques, Saramago, mas sem dúvidas é um livro ainda mais único. Não é uma leitura cansativa. É um texto poético, entre ficção e realidade.

 

Com este livro Paulina Chiziane construiu um marco da literatura moçambicana que questiona as tradições e debate, como nunca antes, a condição feminina na sociedade.

 

Apesar de estar em português é literatura estrangeira.

Ano: 2004 / Novidade: leitura em português de Portugal.

Páginas: 344


SOBRE A AUTORA

 

Negra de origem humilde, Paulina Chiziane teve de percorrer um longo caminho até se firmar como escritora. Paulina Chiziane foi a primeira mulher moçambicana a publicar um romance – apesar de não se considerar romancista, mas uma contadora de histórias. Neta de uma contadora de histórias, Chiziane herdou da avó o talento narrativo para construir histórias simples e envolventes sobre a vida cotidiana em seu país.

 

A autora faz uma literatura ligada às suas raízes culturais, abordando temas femininos num país em que a atividade é exercida quase em sua totalidade por homens. Em Niketche, ela mistura bom humor, consciência social e lirismo para traçar um vigoroso painel da condição feminina e da sociedade do Moçambique.

 

SINOPSE


Niketche conta a história de Tony, um alto funcionário da polícia, e sua mulher Rami, casados há vinte anos. Certo dia, Rami descobre que o marido é polígamo: tem outras quatro mulheres e vários filhos. As esposas de Tony estão espalhadas pelo país: em Maputo, em Inhambane, na Zambézia, em Nampula, em Cabo Delgado. Numa decisão surpreendente, Rami decide ir atrás das mulheres do marido.


O romance retrata a busca de Rami como uma incursão pelo desconhecido e uma tentativa de lidar com a diferença, simbolizada pelas amantes do marido. Niketche é uma das danças do norte de Moçambique, extremo oposto de onde mora Rami. Ritual de amor e erotismo, a dança é desempenhada pelas meninas durante cerimônias de iniciação.


CITAÇÕES

 

"- Aos homens ensinam a amar a si mesmo e só depois ao próximo. Às mulheres se ensina a amar ao próximo, mas nunca a amarem-se a si próprias. Eu amo a mim mesma e depois aos outros, tal como os homens."


"- Rami, neste mundo quem é bom ganha o inferno. Eu sou má, Rami, e vivo no céu."


 

"As mulheres são um mundo de silêncio e de segredo"

 

“Preciso de um espaço para repousar o meu ser. [...] Na terra do meu marido sou estrangeira. Na terra dos meus pais sou passageira. Não sou de lugar nenhum. Não tenho registro, no mapa da vida não tenho nome. Uso este nome de casada que me pode ser retirado a qualquer momento. Por empréstimo. Usei o nome paterno que me foi retirado. Era empréstimo.”


“Precisa-se de um homem para dar dinheiro. Para existir. Para ter estatuto. Para dar um horizonte na vida a milhões de mulheres que andam soltas pelo mundo. Para muitas de nós o casamento é emprego, mas sem salário.”



"Respiro um ar amargo. A corda rebenta sempre do lado mais fraco. É o ciclo da subordinação. O branco diz ao preto: a culpa é tua. O rico diz ao pobre: a culpa é tua. O homem diz à mulher: a culpa é tua. A mulher diz ao filho: a culpa é tua. O filho diz ao cão: a culpa é tua. O cão furioso ladra e morde ao branco e este, furioso, grita de novo para o preto: a culpa é tua. E a roda continua por séculos e séculos."

 

"estamos juntas nesta tragédia. eu, tu, todas as mulheres"

 

"É por isso que as mulheres do mundo inteiro, uma vez por mês, apodrecem o corpo em chagas e ficam impuras, choram lágrimas de sangue, castigadas pela insubmissão de Vuyazi."

 

"Mulher é ser solitário na marcha da multidão..."

 

"Mulher é a dor coletiva que cobre o mundo inteiro".


 

"Madre nossa que estais no céu, santificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso reino - das mulheres, claro -, venha a nós a tua benevolência, não queremos mais a violência. Sejam ouvidos os nossos apelos, assim na terra como no céu.

 

''toda mulher é terra, que se pisa, que se escava, que se semeia. que se fere com pisadas, com pancadas, com socos e pontapés. que se fertiliza. que se infertiliza. a mulher é a primeira morada. a última morada''

 

"O mundo é nosso, em cada coração de mulher cabe todo o universo."

 

"...Quero libertar a raiva de todos os anos de silêncio. Quero explodir com o vento e trazer de volta o fogo para o meu leito, hoje quero existir."

 

"Não és a Rami. Tuo és o monstro que a sociedade construiu".

 

"As mulheres, de mãos dadas, podem mudar o mundo, não é?"

 

“Mulher é terra. Sem semear, sem regar, nada produz."

 

"Mães, mulheres. Invisíveis, mas presentes. Sopro de silêncio que dá luz ao mundo."

 

"A roupa que já, mandei fazer no melhor costureiro da cidade, estou extraordinariamente bela, de luto, mas bela. Tudo o que eu quero é que todas se lembrem de mim ao evocar este dia"


"Quem inventou a moda feminina foi um homem, só pode ser. Inventou sapatos de salto alto para que a mulher não corra, é nao lhe fuja do controle. [...] Inventou as saias apertadas para obrigar a mulher a manter as pernas fechadas, coladas. Inventou as roupas coladas, atrevidas, para poder deliciar a vista na paisagem ondulada de qualquer uma e masturbar-se com o simples olhar."

 

De repente começo a chorar todas as lágrimas do mundo. Deus meu por que me fizeste mulher? (...) Mulher é fel, e a misteriosa criadora de todos os males do universo. Mulher é aquela que faz falta, mas não faz falta nenhuma (...) Mulher é o eterno problema e não há como solucioná-lo. Ela é um projeto imperfeito. Toda ela é feita de curvas. Não tem sequer uma linha reta, não se endireita. É surrealista? Não. É abstrata? Também não. É gótica, isso sim (...) na mulher o sangue não acaba. É menstruação, parto, agressão e espinhos no coração.?

 

"As mulheres deviam ser mais amigas, mais solidárias"


“As mulheres, de mãos dadas, podem mudar o mundo”


“Os seus braços caem como um fardo. As três trovoadas que um dia tentou encomendar contra o noivo da Lu hoje atacam-lhe o cérebro, o coração e o sexo e fazem dele um super-homem calcificado no éden da praça. Ele só vê o escuro e a chuva. Fica uns minutos intermináveis a contemplar o vazio. Era uma ilha de fogo no meio da água. Solto-o. Não cai, mas voa no abismo, em direção ao coração do deserto, ao inferno sem fim.”

 

“Choro. Por mim. Pelos milhões de mulheres que vagueiam náufragas na lixeira da vida. Quem carrega no ventre os mistérios da criação e as sementes da eternidade, para dar luz à vida e iluminar a cegueira do mundo? Somos nós, mulheres, somos nós! Quem dá conforto à vida? Somos nós. Quem faz os machos sentirem-se mais machos, vestirem as plumas da glória e vencerem todos os combates? Somos nós. Quem amacia a alma com flor, depois de um dia de labor? Somos nós. Somos nós a noite e a madrugada num só astro. Somos nós que semeamos a flor e o vento que transporta a nuvem negra que fertiliza a terra. Somos a curva do céu e a curva da terra no sim do horizonte. Somos o centro à volta do qual todas as curvas do universo se curvam. Mas somos nós que colhemos a tempestade. É a nós que a vida sufoca, lentamente, e enterra nas entranhas do morro distante. É a nós que os homens matam de sede, docemente. Somos nós a quem o mundo obriga a procurar um homem rico para receber migalhas da sua mesa. É a nós que a sociedade não dá oportunidade para ganhar com dignidade nosso próprio pão. Em cada dia buscamos o amor e só encontramos enganos. Procuramos a flor e só encontramos espinhos."

 

"Há dias conheci uma mulher do interior da Zambézia. Tem cinco filhos, já crescidos. O primeiro, um mulato esbelto, é dos portugueses que a violaram durante a guerra colonial. O segundo, um preto, elegante e forte como um guerreiro, é fruto de outra violação dos guerrilheiros de libertação da mesma guerra colonial. O terceiro, outro mulato, mimoso como um gato, é dos comandos rodesianos brancos, que arrasaram esta terra para aniquilar as bases dos guerrilheiros do Zimbabwe. O quarto é dos rebeldes que fizeram a guerra civil no interior do país. A primeira e a segunda vez foi violada, mas à terceira e à quarta entregou-se de livre vontade, porque se sentia especializada em violação sexual. O quinto é de um homem com quem se deitou por amor pela primeira vez. Essa mulher carregou a história de todas as guerras do país num só ventre. Mas ela canta e ri. Conta a sua história a qualquer um que passa, de lágrimas nos olhos e sorriso nos lábios e declara: Os meus quatro filhos sem pai nem apelido são filhos dos deuses do fogo, filhos da história, nascidos pelo poder dos braços armados com metralhadoras. A minha felicidade foi ter gerado só homens, diz ela, nenhum deles conhecerá a dor da violação sexual."

 

“Desejo-te todas as mulheres do mundo, menos eu.”

 

«— Estamos juntas nesta tragédia. Eu, tu, todas as mulheres. Só quero que compreendas a minha raiva. Sei que te agredi sem razão. Transferi sobre ti as minhas dores e mágoas, mesmo sabendo que a culpada não eras tu.

— Eu entendo — diz-me ela de cabeça baixa.

— Mas — pergunto — se não está aqui, onde está, então?

— Nos braços de uma terceira, talvez.

—Terceira?

— Sim, terceira.

— Será?

— Mais nova que nós as duas. Mais bela, dizem. Mais fresca que uma alface.

— Conheces?

— Conheço. Já andámos à pancadaria umas tantas vezes.

— Mas... Julieta, como podes andar à pancadaria por um marido que nem sequer é teu?

— E o que significa a palavra teu, quando se trata de um homem?»


«Eu não desisto desta luta. Ao meu Tony eu irei perseguir até aos confins da eternidade. Vou persegui-lo até à morada do tempo. Um dia hei-de reencontrá-lo, eu juro. Hei-de apanhá-lo nem que esse seja o último acto.»

 

«As culturas são fronteiras invisíveis construindo a fortaleza do mundo.»

 

«O mundo acha que as mulheres são interesseiras. E os homens não são? Todo o homem exige da mulher um atributo fundamental: beleza. As mulheres exigem dos homens outro atributo: dinheiro. Qual é a diferença? Só os homens podem exigir e as mulheres não?»

«Mulher é terra. Sem semear, sem regar, nada produz.» (Provérbio zambeziano)

«Mas os passos dos homens são rasto de caracol, não se escondem.»


«O ser humano nasce e morre de mãos vazias. Tudo o que julgamos ter, é-nos emprestado pela vida durante pouco tempo.»

 
«Deus meu, o amor deste mundo não é matemática. Não tem fórmulas estáticas, nem mágicas. O amor é caprichoso como o tempo. Num dia frio. Noutro quente, noutro ainda, chuva e vento. No amor, a solução de um dia não serve para outro dia.»


«Se o amor tivesse preço, garanto-te que cada um de nós comprava em quantidade, para usar e para guardar no celeiro. No amor não existe vergonha. [...] O amor não tem preço.»


«Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.»


«A voz popular diz que a mulher do vizinho é sempre melhor que a minha.»


«Tudo na vida é mortal, tudo se apaga.»


«Não há mulheres feias no mundo, disse a conselheira — o amor é cego. Existem, sim, mulheres diferentes.»


«A vida é uma eterna partilha.»


«[...] quando as mulheres se entendem, os homens não abusam.»


«A vida é uma eterna mudança, um dia quente, outro dia frio.»


«E o que é o amor senão um acordo de interesses?»


«O amor é assim. Um dia te ergue à altivez das catedrais, noutro dia derruba-te ao mais profundo do chão, fazendo-te chafurdar como um verme nas águas fétidas dos pântanos.»

«[...] a vida é feita de tentativas, falha aqui, acerta ali [...].»


«Na morte todos se reúnem e choram, mas em vida o homem combate só.»


«O casamento é isto mesmo. Aceitar apagar a tua vela, para usar a tocha do companheiro, que decidirá a quantidade de luz que te deve ser fornecida, as horas, os momentos.»

 
«A cultura não é eterna, mas esforçamo-nos por continuar a linha da tradição.»


«A sabedoria popular diz que toda a mulher bela é feiticeira. Se não é feiticeira é volúvel. Se não é volúvel é preguiçosa, mentirosa, inútil.»

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