TODA MULHER DEVE LER ESSE LIVRO!
Estou participando de um novo grupo de leitura
aqui em Paris, desta vez para ler mulheres que escrevem em língua portuguesa
(Leia Mulheres Paris), e o que começou como auto obrigação, terminou em uma
leitura para lá de prazerosa.
De antemão é um choque de cultura que de situações
tão absurdas as vezes eu achava engraçado – o famoso rindo com respeito. Apesar
desse clima, por vezes descontraído, Niketche - uma história de poligamia é um
romance cru. Narrado em primeira pessoa, o enredo já me atraiu por aí. Por
vezes parei de ler apenas para digerir as palavras difíceis de engolir.
Minha opinião geral é que se trata de um livro
triste. É tão verdadeiro, tão autêntico que ninguém consegue passar indiferente
por suas páginas. Uma verdadeira obra-prima, que inclusive já faz parte dos
romances moçambicanos mais renomados do século XX.
Paulina Chiziane é vencedora do Prêmio Camões
2021, o mais prestigiado da língua portuguesa. A autora é uma verdadeira
contadora de histórias, que de tantas acaba se tornando um romance. Me lembra
Garcia Marques, Saramago, mas sem dúvidas é um livro ainda mais único. Não é
uma leitura cansativa. É um texto poético, entre ficção e realidade.
Com este livro Paulina Chiziane construiu um marco
da literatura moçambicana que questiona as tradições e debate, como nunca
antes, a condição feminina na sociedade.
Apesar de estar em português é literatura
estrangeira.
Ano: 2004 / Novidade: leitura em português de
Portugal.
Páginas: 344
SOBRE A AUTORA
Negra de origem humilde, Paulina Chiziane teve de
percorrer um longo caminho até se firmar como escritora. Paulina Chiziane foi a
primeira mulher moçambicana a publicar um romance – apesar de não se considerar
romancista, mas uma contadora de histórias. Neta de uma contadora de histórias,
Chiziane herdou da avó o talento narrativo para construir histórias simples e
envolventes sobre a vida cotidiana em seu país.
A autora faz uma literatura ligada às suas raízes
culturais, abordando temas femininos num país em que a atividade é exercida
quase em sua totalidade por homens. Em Niketche, ela mistura bom humor,
consciência social e lirismo para traçar um vigoroso painel da condição
feminina e da sociedade do Moçambique.
SINOPSE
Niketche conta a história de Tony, um alto funcionário da polícia, e sua mulher
Rami, casados há vinte anos. Certo dia, Rami descobre que o marido é polígamo:
tem outras quatro mulheres e vários filhos. As esposas de Tony estão espalhadas
pelo país: em Maputo, em Inhambane, na Zambézia, em Nampula, em Cabo Delgado.
Numa decisão surpreendente, Rami decide ir atrás das mulheres do marido.
O romance retrata a busca de Rami como uma incursão pelo desconhecido e uma
tentativa de lidar com a diferença, simbolizada pelas amantes do marido. Niketche
é uma das danças do norte de Moçambique, extremo oposto de onde mora Rami.
Ritual de amor e erotismo, a dança é desempenhada pelas meninas durante
cerimônias de iniciação.
CITAÇÕES
"- Aos homens ensinam a amar a si mesmo e só
depois ao próximo. Às mulheres se ensina a amar ao próximo, mas nunca a
amarem-se a si próprias. Eu amo a mim mesma e depois aos outros, tal como os homens."
"- Rami, neste mundo quem é bom ganha o inferno. Eu sou má, Rami, e vivo
no céu."
"As mulheres são um mundo de silêncio e de
segredo"
“Preciso de um espaço para repousar o meu ser.
[...] Na terra do meu marido sou estrangeira. Na terra dos meus pais sou
passageira. Não sou de lugar nenhum. Não tenho registro, no mapa da vida não
tenho nome. Uso este nome de casada que me pode ser retirado a qualquer
momento. Por empréstimo. Usei o nome paterno que me foi retirado. Era
empréstimo.”
“Precisa-se de um homem para dar dinheiro. Para existir. Para ter estatuto.
Para dar um horizonte na vida a milhões de mulheres que andam soltas pelo
mundo. Para muitas de nós o casamento é emprego, mas sem salário.”
"Respiro um ar amargo. A corda rebenta
sempre do lado mais fraco. É o ciclo da subordinação. O branco diz ao preto: a
culpa é tua. O rico diz ao pobre: a culpa é tua. O homem diz à mulher: a culpa
é tua. A mulher diz ao filho: a culpa é tua. O filho diz ao cão: a culpa é tua.
O cão furioso ladra e morde ao branco e este, furioso, grita de novo para o
preto: a culpa é tua. E a roda continua por séculos e séculos."
"estamos juntas nesta tragédia. eu, tu,
todas as mulheres"
"É por isso que as mulheres do mundo
inteiro, uma vez por mês, apodrecem o corpo em chagas e ficam impuras, choram
lágrimas de sangue, castigadas pela insubmissão de Vuyazi."
"Mulher é ser solitário na marcha da
multidão..."
"Mulher é a dor coletiva que cobre o mundo
inteiro".
"Madre nossa que estais no céu, santificado
seja o vosso nome. Venha a nós o vosso reino - das mulheres, claro -, venha a
nós a tua benevolência, não queremos mais a violência. Sejam ouvidos os nossos
apelos, assim na terra como no céu.
''toda mulher é terra, que se pisa, que se
escava, que se semeia. que se fere com pisadas, com pancadas, com socos e
pontapés. que se fertiliza. que se infertiliza. a mulher é a primeira morada. a
última morada''
"O mundo é nosso, em cada coração de mulher
cabe todo o universo."
"...Quero libertar a raiva de todos os anos
de silêncio. Quero explodir com o vento e trazer de volta o fogo para o meu
leito, hoje quero existir."
"Não és a Rami. Tuo és o monstro que a
sociedade construiu".
"As mulheres, de mãos dadas, podem mudar o
mundo, não é?"
“Mulher é terra. Sem semear, sem regar, nada
produz."
"Mães, mulheres. Invisíveis, mas presentes.
Sopro de silêncio que dá luz ao mundo."
"A roupa que já, mandei fazer no melhor
costureiro da cidade, estou extraordinariamente bela, de luto, mas bela. Tudo o
que eu quero é que todas se lembrem de mim ao evocar este dia"
"Quem inventou a moda feminina foi um homem, só pode ser. Inventou sapatos
de salto alto para que a mulher não corra, é nao lhe fuja do controle. [...]
Inventou as saias apertadas para obrigar a mulher a manter as pernas fechadas,
coladas. Inventou as roupas coladas, atrevidas, para poder deliciar a vista na
paisagem ondulada de qualquer uma e masturbar-se com o simples olhar."
De repente começo a chorar todas as lágrimas do
mundo. Deus meu por que me fizeste mulher? (...) Mulher é fel, e a misteriosa
criadora de todos os males do universo. Mulher é aquela que faz falta, mas não
faz falta nenhuma (...) Mulher é o eterno problema e não há como solucioná-lo.
Ela é um projeto imperfeito. Toda ela é feita de curvas. Não tem sequer uma
linha reta, não se endireita. É surrealista? Não. É abstrata? Também não. É
gótica, isso sim (...) na mulher o sangue não acaba. É menstruação, parto,
agressão e espinhos no coração.?
"As mulheres deviam ser mais amigas, mais
solidárias"
“As mulheres, de mãos dadas, podem mudar o mundo”
“Os seus braços caem como um fardo. As três trovoadas que um dia tentou
encomendar contra o noivo da Lu hoje atacam-lhe o cérebro, o coração e o sexo e
fazem dele um super-homem calcificado no éden da praça. Ele só vê o escuro e a
chuva. Fica uns minutos intermináveis a contemplar o vazio. Era uma ilha de
fogo no meio da água. Solto-o. Não cai, mas voa no abismo, em direção ao
coração do deserto, ao inferno sem fim.”
“Choro. Por mim. Pelos milhões de mulheres que
vagueiam náufragas na lixeira da vida. Quem carrega no ventre os mistérios da
criação e as sementes da eternidade, para dar luz à vida e iluminar a cegueira
do mundo? Somos nós, mulheres, somos nós! Quem dá conforto à vida? Somos nós.
Quem faz os machos sentirem-se mais machos, vestirem as plumas da glória e
vencerem todos os combates? Somos nós. Quem amacia a alma com flor, depois de
um dia de labor? Somos nós. Somos nós a noite e a madrugada num só astro. Somos
nós que semeamos a flor e o vento que transporta a nuvem negra que fertiliza a
terra. Somos a curva do céu e a curva da terra no sim do horizonte. Somos o
centro à volta do qual todas as curvas do universo se curvam. Mas somos nós que
colhemos a tempestade. É a nós que a vida sufoca, lentamente, e enterra nas
entranhas do morro distante. É a nós que os homens matam de sede, docemente.
Somos nós a quem o mundo obriga a procurar um homem rico para receber migalhas
da sua mesa. É a nós que a sociedade não dá oportunidade para ganhar com
dignidade nosso próprio pão. Em cada dia buscamos o amor e só encontramos
enganos. Procuramos a flor e só encontramos espinhos."
"Há dias conheci uma mulher do interior da
Zambézia. Tem cinco filhos, já crescidos. O primeiro, um mulato esbelto, é dos
portugueses que a violaram durante a guerra colonial. O segundo, um preto,
elegante e forte como um guerreiro, é fruto de outra violação dos guerrilheiros
de libertação da mesma guerra colonial. O terceiro, outro mulato, mimoso como
um gato, é dos comandos rodesianos brancos, que arrasaram esta terra para
aniquilar as bases dos guerrilheiros do Zimbabwe. O quarto é dos rebeldes que
fizeram a guerra civil no interior do país. A primeira e a segunda vez foi
violada, mas à terceira e à quarta entregou-se de livre vontade, porque se
sentia especializada em violação sexual. O quinto é de um homem com quem se
deitou por amor pela primeira vez. Essa mulher carregou a história de todas as
guerras do país num só ventre. Mas ela canta e ri. Conta a sua história a
qualquer um que passa, de lágrimas nos olhos e sorriso nos lábios e declara: Os
meus quatro filhos sem pai nem apelido são filhos dos deuses do fogo, filhos da
história, nascidos pelo poder dos braços armados com metralhadoras. A minha
felicidade foi ter gerado só homens, diz ela, nenhum deles conhecerá a dor da
violação sexual."
“Desejo-te todas as mulheres do mundo, menos eu.”
«— Estamos juntas nesta tragédia. Eu, tu, todas as
mulheres. Só quero que compreendas a minha raiva. Sei que te agredi sem razão.
Transferi sobre ti as minhas dores e mágoas, mesmo sabendo que a culpada não
eras tu.
— Eu entendo — diz-me ela de cabeça baixa.
— Mas — pergunto — se não está aqui, onde está,
então?
— Nos braços de uma terceira, talvez.
—Terceira?
— Sim, terceira.
— Será?
— Mais nova que nós as duas. Mais bela, dizem.
Mais fresca que uma alface.
— Conheces?
— Conheço. Já andámos à pancadaria umas tantas
vezes.
— Mas... Julieta, como podes andar à pancadaria
por um marido que nem sequer é teu?
— E o que significa a palavra teu, quando se
trata de um homem?»
«Eu não desisto desta luta. Ao meu Tony eu irei perseguir até aos confins da
eternidade. Vou persegui-lo até à morada do tempo. Um dia hei-de reencontrá-lo,
eu juro. Hei-de apanhá-lo nem que esse seja o último acto.»
«As culturas são fronteiras invisíveis
construindo a fortaleza do mundo.»
«O mundo acha que as mulheres são interesseiras.
E os homens não são? Todo o homem exige da mulher um atributo fundamental:
beleza. As mulheres exigem dos homens outro atributo: dinheiro. Qual é a
diferença? Só os homens podem exigir e as mulheres não?»
«Mulher é terra. Sem semear, sem regar, nada produz.» (Provérbio zambeziano)
«Mas os passos dos homens são rasto de caracol, não se escondem.»
«O ser humano nasce e morre de mãos vazias. Tudo o que julgamos ter, é-nos
emprestado pela vida durante pouco tempo.»
«Deus meu, o amor deste mundo não é matemática. Não tem fórmulas estáticas, nem
mágicas. O amor é caprichoso como o tempo. Num dia frio. Noutro quente, noutro
ainda, chuva e vento. No amor, a solução de um dia não serve para outro dia.»
«Se o amor tivesse preço, garanto-te que cada um de nós comprava em quantidade,
para usar e para guardar no celeiro. No amor não existe vergonha. [...] O amor
não tem preço.»
«Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.»
«A voz popular diz que a mulher do vizinho é sempre melhor que a minha.»
«Tudo na vida é mortal, tudo se apaga.»
«Não há mulheres feias no mundo, disse a conselheira — o amor é cego. Existem,
sim, mulheres diferentes.»
«A vida é uma eterna partilha.»
«[...] quando as mulheres se entendem, os homens não abusam.»
«A vida é uma eterna mudança, um dia quente, outro dia frio.»
«E o que é o amor senão um acordo de interesses?»
«O amor é assim. Um dia te ergue à altivez das catedrais, noutro dia derruba-te
ao mais profundo do chão, fazendo-te chafurdar como um verme nas águas fétidas
dos pântanos.»
«[...] a vida é feita de tentativas, falha aqui, acerta ali [...].»
«Na morte todos se reúnem e choram, mas em vida o homem combate só.»
«O casamento é isto mesmo. Aceitar apagar a tua vela, para usar a tocha do
companheiro, que decidirá a quantidade de luz que te deve ser fornecida, as
horas, os momentos.»
«A cultura não é eterna, mas esforçamo-nos por continuar a linha da tradição.»
«A sabedoria popular diz que toda a mulher bela é feiticeira. Se não é
feiticeira é volúvel. Se não é volúvel é preguiçosa, mentirosa, inútil.»
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